14 de Fevereiro de 2014
Por João Paulo Batalha, membro da Direção da TIAC
A diplomacia, é sabido, faz-se mais de fins do que de princípios. Na defesa dos
seus interesses estratégicos, os Estados agem geralmente por calculismo, mesmo
quando isso implica abandonarem na sua política externa os valores que dão como
inegociáveis no plano interno. O medo de melindrar parceiros úteis cala a
vergonha de fazer negócio com gente pouco recomendável. E se isto já é assim em
circunstâncias normais, quando a política externa se faz aos tropeções, sem
visão e de chapéu na mão, mais fácil é perder de vista um sentido mínimo de
decência.
Na última semana, dois sinais de alerta deviam ter despertado as consciências
nacionais. Na sexta-feira passada, a eurodeputada Ana Gomes organizou uma
audição, em Lisboa, de dois cidadãos angolanos vítimas e testemunhas do
sistemático abuso de direitos humanos e da corrupção institucionalizada na
exploração diamantífera em Angola – um negócio multimilionário nas mãos de uns
quantos generais e agentes próximos do poder político de Luanda.
Sujeitos a todo o tipo de pressões e ameaças, o soba
(chefe tradicional) Mwana Capenda e a cidadã Linda Moisés da Rosa, que perdeu
dois filhos às mãos de autênticos esquadrões de morte na região das Lundas,
vieram a Lisboa revelar, com uma coragem extraordinária, as práticas de abuso de
um poder instalado que trata as riquezas naturais angolanas – e os próprios
cidadãos do país – como propriedade privada e uma oportunidade para negócios
sujos de toda a espécie. Vieram a Lisboa à procura de apoio para as suas
denúncias. Encontraram o silêncio incómodo das autoridades políticas, numa
reação que envergonha qualquer português que preze a Justiça e o Estado de Direito.
Nos últimos dias, notícia de um novo negócio: a Guiné Equatorial presta-se a injetar
mais de 130 milhões de euros no Banif (onde o Estado já enterrou outros 700
milhões). E em paralelo, não por acaso, notícias risonhas sobre a possibilidade
de a mesma Guiné Equatorial ser finalmente aceite na Comunidade de Países de
Língua Portuguesa (CPLP). Numa altura em que o regime de Teodoro Obiang se vê
acossado e bens da família presidencial parqueados em França se veem sob a mira
das autoridades, os cleptocratas procuram destino mais seguro para o produto dos
seus roubos. E Lisboa chega-se à frente, com a hospitalidade de um banco
liderado (por coincidência, seguramente) por um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros.
Portugal precisa de captar investimento estrangeiro, é certo, mas à falta dele parece que se contenta em acolher dinheiro para lavagem. Sejamos claros: os “investimentos”de “empresários” angolanos ou da Guiné Equatorial (e escrevo “empresários”entre aspas porque estes empreendedores são sempre membros, ou próximos, do poder político) não acrescentam um cêntimo à economia nacional, não criam um emprego, não financiam qualquer inovação, não
acrescentam valor. São participações financeiras destinadas a colocar dinheiro sujo a salvo do povo a quem ele foi roubado. É tudo.
Ao acolher este“investimento”, Portugal desincentiva o investimento reprodutivo, de
empresários limpos que procuram países organizados, com regras claras e justiça
funcional, que pensam a longo prazo e querem segurança. Numa lavandaria não se
constrói nada e, como o Presidente da República bem explicou, a má moeda expulsa
a boa moeda. Um dia, Portugal, já manchado por uma história sombria de
colonialismo, terá de explicar ao povo angolano (e, pelo andar da carruagem, ao
povo da Guiné Equatorial) em nome de que cumplicidade e de que negócio apoiou os
líderes que durante décadas roubaram, agrediram e assassinaram os seus próprios
cidadãos. Em julho, os líderes da CPLP decidem sobre o pedido de adesão da Guiné
Equatorial. O tom da conversa é de que o negócio está fechado e a adesão é
inevitável. O secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros diz-se
“profundamente convencido” de “um final feliz” (só não explica “feliz” para
quem). Mas o próprio Governo reconhece que a Guiné Equatorial está longe de
cumprir os requisitos mínimos para ser um parceiro aceitável, e embora os
outros países da CPLP defendam esta adesão, não há um líder lusófono (tirando
José Eduardo dos Santos, não por acaso) que dê a cara em defesa de Teodoro Obiang.
A TIAC faz parte de um movimento da sociedade civil que pediu ao primeiro-ministro
timorense, Xanana Gusmão – anfitrião da próxima cimeira da CPLP – que vete este
negócio. A prisão arbitrária de opositores, as execuções de adversários
políticos e a corrupção desenfreada não são parceiros aceitáveis. E o argumento
de que a CPLP será uma boa influência para a democratização do regime é de uma
má-fé deplorável. A Guiné Equatorial não procura ajuda para se democratizar;
procura ajuda para se branquear. É essa ajuda que a CPLP está a ponderar vender.
Acreditar numa democratização por osmose, por feliz acidente, não é próprio de
gente crescida.
Ainda vamos a tempo, mas a janela está a fechar-se. Na cimeira de julho jogam-se os princípios da lusofonia e os fins estratégicos do Estado português. Ou estamos a caminho de ser um país limpo, transparente, justo e exigente – connosco próprios e com os nossos parceiros – ou nos tornamos
vendedores de indulgências e amigos de ocasião para todo o tipo de ditadores e donos de dinheiro sujo. Quem tanto se preocupa com a nossa reputação junto dos mercados e dos investidores internacionais devia preocupar-se com isto, acima de tudo.
Muito medo e pouca vergonha.docx |