Na selva do Congo
Capítulo 2
“Entre o Amor e o Congo”
"Travelling is like flirting with life. It’s like saying, ‘I would stay and love you, but I have to go; this is my station.’" Lisa St. Aubin de Teran
5 de Fevereiro
Quando as palavras proveem de uma região recôndita do nosso ser, também elas nos chegam imbuídas de um estranho exotismo, tal como uma língua estrangeira que escutada nos remete para um estar ausente da paisagem que a temos como nossa, inculcada.
É na riqueza da linguagem – aquela que provem do fim (principio) do (mundo) nosso Ser e aquela, a outra, que o nosso corpo exprime perante o ser amado – que nos encontramos na totalidade, pois no caminho entre ambas as linguagens estamos nós “em casa” tão familiarizados com os “nossos” hábitos. É aqui neste lugar-comum, onde o objecto material é corroborado pelos nossos sentidos, que a linguagem cultural se impõe sobre a linguagem primordial – aquela que é capaz de se transformar aquando da fusão dela com o sentimento do amor, da derradeira compreensão e consequentemente modificar, a “nossa casa” os nossos “hábitos” - a linguagem comum.
6 de Fevereiro
A tua decisão foi a mais certa, pois foi aquela que se mostrou diante de ti como sendo a mais assertiva para o momento. A partir daqui não existem mais argumentos para a contrapor; ela já foi tomada e imbuída do mais genuíno sentimento – aquele ao alcance de cada um e de natureza insondável… Esse preciso momento reveste-se de uma força e contornos ancestrais onde o nosso próprio ser, não só mas também, aí se agarra, se alimenta e se contrapõe gerando um conflicto interno entre si e si mesmo, podendo desequilibrar-se e lançando-se para o estado da permanente indecisão – o dualismo no Ser.
27 de Março
À nossa frente existe um vidro transparente que avança à medida que nós avançamos, não o vemos e não distorce a realidade, pois é transparente. Quando tomamos a consciência de que ele existe a distância que nos separa é menor, até que o vidro que não se podia tocar, passou a estar ao nosso alcance físico. Ele nada distorce na nossa visão, note-se. Ele é a nossa realidade, que agora se sente com os dedos, as palmas das mãos. Chegou o instante de que tanto esperávamos – quebrar a realidade – agora ao nosso alcance, não porque a realidade distraída parou enquanto o observador caminhava face a ela, mas sim pelo facto de a termos detectado, o vidro, a realidade era uma construção nossa, artificial na medida que nos dividia do todo, pois havia um outro lado, um lado aparentemente real, pois a transparência assim o dizia, por vezes e consoante a luz, ele espelhava a nossa imagem, e nesse jogo de reflexo, projecção da visão vivemos; até que nos apercebemos da dualidade, do outro lado, da divisão. Só existe uma e e uma só alternativa para avançar, que é estilhaçar o vidro e unirmo-nos com o todo!
6 de Abril
Quando penso que vivo subordinado ao que sinto, é quando me distancio de quem sou. É na dor do pensar que sinto o sentimento de existir.
4 de Maio
Nos meus sonhos eu beijo-vos a todas e desfaço-me em lágrimas.
7 de Junho
Para quê ter asas? Para que serve saber voar se só podemos voar no espaço consignado? Se para uma gaivota o espaço que se lhe abre no céu se encontra delimitado por linhas invisíveis de territorialidade, que diferença há então entre as asas dela e a minas pernas? Também eu tenho as minhas fronteiras traçadas – a Terra. Nela me encontro aprisionado.
12 de Junho
Olá. É claro que fico perturbado com a nossa incapacidade de resolver os problemas…
Bom dia. Fiquei a pensar na nossa conversa, no valor das palavras. O meu sentimento é de genuína confusão. Não consigo articular as palavras sem as associar às experiencias vividas. Fico a pensar preocupado em saber como cairão elas nos vossos braços… Poderão elas espelhar os nossos desejos mais íntimos? Qual a força das suas ligações? De onde proveem? Serão reais ou fictícias? Num instante do segundo o seu conteúdo metamorfoseia-se à mediada que vão sendo construídas. As palavras têm vida própria – nascem, vivem e morrem e carregam em si os genes do seu criador.
11 de Julho
Gostava de poder dizer-te que voltarei para ti, mas já disse ao meu coração que ele é livre para partir e voltar a se amar, a se abraçar e de novo, selvagem, que se perca no encalço de uma Cymothoe sangaris - borboleta cor de sangue - deambulando entre a sombra e o sol. Voará livre, sem desejos, sem aflições, só consigo e com o mundo que o vê passar.
Retalhos da vida de um naturalista - capítulo 2 - Entre o Amor e o Congo.pdf |