Na selva do Congo
Capítulo 5
“Miscelâneas”
O tempo deixou de passar. Semanalmente vejo-me num pequeno pedaço de espelho quebrado quando sinto a cara cobrir-se de pêlos e então que numa bacia com um pouco de água do rio me barbeio devolvendo à mente a passagem do tempo. São 5 e meia e acordo com os primeiros cantos de aves da manhã – Pycnonotus tricolor, Cyanomitra olivacea, e outros mais ainda por decifrar. As aves também me devolvem a imagem que me pertence, de quem também eu sou. O nosso lado de practito, mecânico permite-nos os maiores pecados; e então perdoo-me de ser como todos são. Puxada por uma corda a cabra entra no nosso quintal para depois de algum tempo decorrido despertar a minha atenção com os seus últimos gritos lembrando vozes tristes de crianças. Como-a, ou antes o meu lado mais sombrio e primitivo come-a. Sinto-me a sobreviver, vejo-me tal como sou – uma sombra revelada pela luz convidada que penetra o meu ser iluminando esse mesmo ser sombrio.
Os preparativos para a primeira missão na selva consomem-me praticamente toda a energia e tempo. Tudo necessita ser supervisionado – a equipa de 13 pessoas que irei chefiar apresentar-se-á na hora da partida à espera das ordens, sempre à espera de ordens... 200kg de alimentos para 14 dias na selva, dos quais 60kg de farinha de mandioca – fufu – o alimento base da região da bacia do rio Congo. 7 carregadores serão necessários só para transportarem os viveres.
Debaixo da minha cama encontram-se já preparados os sacos individuais de todos os elementos da equipa dos quais os carregadores receberão: um colchão de espuma, uma rede mosquiteiro, 8 metros de corda de nylon, uma garrafa usada de litro e meio de água, dois sabões para lavar a roupa, um sabonete anti-bacteriano corporal, uma colher de metal, um copo e um prato de plástico tudo metido num saco de arroz amarrado com um bom pedaço de corda de plástico. O seu salário será de 2 dólares diários, bastante abaixo dos outros 5 elementos que comporão a equipa de observadores – Bussolier / Machetteure, Assistante du chefe, Porteure du pentametre/equipment et substitute du premiere observateure, assistante botaniste e porteur permanente, que ganharão 6 dólares diários, salário esse que contempla também o cozinheiro. A fechar a equipa o Botânico, cujo salário se encontra bastante abaixo dos 800 dólares que mensalmente eu irei ganhar.
A farmácia, os diversos equipamento do acampamento, os mantimentos devidamente embalados, pesados e divididos, as centenas de bactérias recarregaveis carregadas, os múltiplos e variados equipamentos de recolha de dados devidamente etiquetados, arrumados e separados entre os distintos observadores, a bagagem pessoal e a planificação e documentação dos transectos que irão ser efectuados têm consumido 12 horas diárias das últimas três semanas. Depois da formação teórica e a práctica efectuada no posto de patrulha dos eco guardas em Lokofa, esta última que veio a demonstrar a incongruência da metodologia concebida na mesa do instituto Max Plank face às condições do terreno, da selva. Tudo se encontra em standby. As ambições dos biólogos Alemães terão que se ajustar à natureza do lugar. É a selva que determinará as regras do jogo.
Domingo, há futebol em Monkoto – a equipa da casa de equipamento de cor preta e vermelha – Les Etoiles – joga contra uma equipa de fora, desconhecida (...) que se diferencia pela heterogeneidade do equipamento onde também se veste a cor preta e muitos dos seus jogadores jogam descalços. Depois de vários dias de caminho percorrido a pé e sem sapatos, a estranha equipa chega ao intervalo da partida com zero golos sofridos e zero golos marcados. Não espero pélo fim do jogo, e vou-me embora pois o ar à minha volta começou a tornar-se espesso e a juntar-se ao cheiro da urina das vacas sagradas (há uma família de cerca de 25 vacas de belo pélo malhado lembrando os cavalos mustangue da América do norte, que se passeiam livremente por toda a aldeia) que provavelmente aqui passaram a noite, começam as crianças a formar um também espesso circulo estrangulador em meu redor. Dezenas de pequeninos olhos espantados devoram agora a minha pele, sinto o cheiro a suor e a urina seca impregnada nas poucas e dilaceradas peças de roupa das crianças na sua esmagadora maioria descalças. Fujo para casa. Mais tarde fiquei a saber que Les Etoiles ganharam a partida. Neste jogo que lhe chamam futebol, a bola é redonda mas o campo não permite a bola rolar. Eu chamo-lhe Pingball, pois a bola está permanentemente a saltar devido aos tufos de erva que cobrem grande superficie do campo e que ninguém se deu e se dá ao trabalho de os remover e assim poderem observar um espéctaculo onde os jogadores poderão driblar a bola sobre a terra batida. Também não existem cartões de sancionamento, pois aquando de uma rasteira sem bola efectuada por um jogador da casa o arbitro marcou a falta, mas não mostrou o cartão, não fossem os espectadores incendiar o espéctaculo, assim me responderam quando o momento surgiu.
Retalhos da vida de um naturalista - Capítulo 5 - Miscelâneas.pdf |