Na selva do Congo
Capítulo 9
“Dias inteiros nas árvores”
...”a vida é para não se fazer nenhum andar sempre à boa vida, mas ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo não fazer nenhum é uma chatice. No fim de contas vai dar tudo ao mesmo, trabalhar não trabalhar, começa ganha-se o hábito lá vamos nós no barco o que é preciso, o que é preciso não é lamentar nada, apenas isso.”
Marguerrite Duras
Janvier mudou de roupa, à saída de casa noto as usuais duas peças de roupa de domingo - Jeans e camisa branca de finas riscas azuis; também trocou os chinelos de dedo por um bem conservado par de sapatilhas. Está vestido com o uniforme de domingo. Janvier vai à missa, são cerca de 8 horas da manhã. Eu cá, sentei-me aqui a descascar amendoins num pequeno pátio debaixo da sombra à entrada da casa a onde habito, exposto aos olhos dos transeuntes que sobem e descem a avenida do porto – um largo caminho de terra arenosa separado por uma decrepita cerca construída em bambu. Aqueles que no caminho param e me observam causam-me ora por vezes raiva, ora por vezes compreensão - sobretudo quando são crianças - espiam-me tal como nós o fazemos quando vamos ao jardim zoológico. Tenho a certeza que esses animais enjaulados nos cuspiriam em cima se soubessem cuspir. Numa ocasião, levanto-me com vontade de agredir um jovem que especado no portão da entrada da casa me observa. Pergunto-lhe se procura alguém, responde-me que espera uma pessoa da casa contigua mais baixo e de imediato pede-me 500 francos para comprar um sabão para lavar a roupa, imitando com o braço o acto de se lavar. Para não o mandar à merda, indico-lhe o caminho do mercado e digo-lhe que aqui não é uma mercearia. Quase todos, esticam a mão – do inválido ao válido, da criança ao idoso. É a pedinchice permanente. Ter a cor da pele branca não só é sinónimo de riqueza como também de caridade. Volto a por os auriculares nos ouvidos e regresso de novo a casa, à terra a onde nasci. Tantas interrupções na peça de teatro que escuto, já o sabia de antemão se saísse do meu quarto e me expusesse. Bernard um dos cozinheiros do projecto aproxima-se e espanta-se com a minha escrita e o stylo com que escrevo. Pergunta-me que cor é essa com que escrevo, respondo-lhe que é cinzento, que escrevo a grafite tal como um lápis e que não escrevo com um lápis mas sim com uma lapiseira. Era a primeira vez que Bernard punha os olhos numa lapiseira. Lavo de novo as mãos (descasco amendoins) pois ainda não consigo deixar de dar um passou-bem às pessoas que me conhecem e que me visitam. Está um dia de céu azul esborratado com tons de cinzento. Se pegarem numa folha branca e a pintarem de azul bébé, sujarem as almofadas dos dedos com uma pelicula de grafite e os passarem sobre o azul do papel, poderão ver a cor que agora tem o céu sobre Monkoto. Há dias de verão assim nas manhãs das nossas praias. Sim decidi-me à estupida tarefa de descascar amendoins, livrar-me da fina pele avermelhada que cobre as saborosas sementes torradas. Ninguém aqui o faz, só eu, e todos se espantam e me dizem que a razão de não o fazerem deve-se às vitaminas contidas na pele...
Perdi a asa da borboleta que nesta página onde escrevo a tinha guardada. Restam agora suaves traços de minúsculas escamas lembrando o pó das estrelas. Como são belas as borboletas! Poderia ter sido um coleccionador de borboletas – um leptidopeterista (amador), se não as amasse tanto! Capturá-las-ia com uma longa rede tal como o especialista Hungaro que por aqui passou o fez e que outros o faloão também e com uma ligeira pressão do dedo indicador e do polegar lhes tiraria a vida esmagando o tórax e assim destruindo os seus órgãos vitais; desta forma aumentaria a colecção, o prestigio, possuindo para sempre raras espécies ou mesmo até descobrindo novas espécies para a ciência!
“Dias inteiros nas árvores” – o teatro continua. Os olhos adaptaram-se ao verde das selvas de onde originamos, a alma desajustou-se da espessa natureza da mesma selva e procura agora a sua natureza (perdida?) nos mais diversos horizontes.
...”sozinha, preciso de estar sozinha quero ser ainda mais infeliz quero estar ainda mais só, porquê? Isso é comigo. Há uma razão mas eu não digo qual é. Preciso de pensar, pensar, pensar há uma necessidade de recuperar toda está comédia que durou setenta e tal anos e que não faz sentido nenhum, não faz sentido nenhum e como a morte ainda não veio, então pensemos, reencontremos, façamos tábua rasa do passado, rodeamo-nos de flores como uma rapariga; que se lixem todos, todos, todos, todos! Ah que maravilha!"
Passa um milhafre, e outro, e mais um bando alegre de pequenos psitacideos, há também pássaros sol, andorinhas das palmeiras, tentilhões de mascaras vermelhas que pululam as longas ervas carregadas de sementes ao longo dos caminhos, e daqui não vejo o rio e o seu corpo ondulante, espesso, carregado de negros peixes de longos bigodes tentaculares, mas ouço-o atraves dos Ibis que parecem reclamar da sua triste vida e que na sua floresta ribeirinha habitam. Monkoto é um acidente na paisagem. É a Natureza que reina sobre a aldeia dos homens, sobre os sonhos dos colonos europeus que outrora ergueram sólidas casas que com o peso do tempo e hoje cheias de nada se desmoronam pedaço após pedaço - a coluna do vão de uma escada exterior que caiu e aí ficou e nunca mais se levantou, lembrando o nariz da esfinge, algo incomensuravelmente pesado para ser levantado de novo. Tudo o que cai aqui nunca mais se levanta!
...”naturezas fáceis, sim nunca tiveram de lutar contra o prazer de viver. Estudos, situações, casamentos, tudo surgiu naturalmente. Tu não podes entender a tristeza dessas existências seguras, sólidas; a angustia que me invade quando penso nos meus filhos perfeitamente acabados, definidos, adultos, adultos até ao tutano, até aos cadavers, mais tarde sem uma ruga.”
A peça continua ouço-a uma vez mais. Adormeço embalado pela língua materna, e de novo recomeço-a até ao seu fim.
Retalhos da vida de um Naturalista - Capítulo 9 - “Dias inteiros nas àrvores” por ZP |