por Peter Maass
A saga da documentarista Laura Poitras, que respondeu a um e-mail anônimo de
Edward Snowden
Em janeiro passado, Laura Poitras recebeu um e-mail anônimo pedindo-lhe que
mandasse sua chave pública de criptografia. Já fazia quase dois anos que Laura
vinha trabalhando num documentário sobre vigilância e espionagem, e
ocasionalmente recebia mensagens de desconhecidos. Dessa vez ela respondeu e
enviou sua chave pública, permitindo à outra pessoa o envio de e-mails
criptografados que só a própria Laura poderia abrir, usando sua chave
particular. Mas ela não achou que fosse dar em muita coisa.
O desconhecido respondeu com instruções para a criação de um sistema ainda mais
seguro de proteção da correspondência entre eles. Prometendo informações
altamente confidenciais, disse a Laura para escolher, como senhas, frases longas
capazes de resistir a um ataque maciço de uma rede de computadores. “Imagine um
adversário capaz de 1 trilhão de combinações por segundo”, escreveu-lhe o desconhecido.
Pouco depois, Laura recebeu uma mensagem cifrada que listava uma série de programas
secretos de espionagem e monitoramento de comunicações conduzidos pelo governo americano.
Ela tinha ouvido falar de um deles, mas não dos outros. Depois de descrever cada um dos programas, o
desconhecido acrescentava sempre alguma versão da mesma afirmativa: “Isto eu tenho como provar.”
Segundos depois de ter decodificado e lido esse e-mail,
Laura Poitras desconectou-se da internet e apagou a mensagem do seu computador.
“E pensei comigo: se isso for verdade, minha vida acabou de mudar”, contou-me
ela há dois meses. “As coisas que ele afirmava conhecer e ser capaz de provar eram estarrecedoras.”
Laura, entretanto, continuou desconfiada de seu
interlocutor. Seu maior temor era que algum agente do governo pudesse estar
tentando induzi-la a revelar informações sobre as pessoas que tinha entrevistado
para o seu documentário, entre elas Julian Assange, o editor da organização
WikiLeaks. “Eu dei uma prensada nele”,lembrou Laura. “Disse que ou ele tinha
mesmo aquelas informações e estava correndo riscos imensos, ou estava preparando
uma armadilha para mim e as pessoas que eu conheço, ou então era um louco.”
As respostas foram tranquilizadoras, mas não o suficiente. Laura desconhecia o
nome, o sexo, a idade ou para quem trabalhava o desconhecido (A CIA? A NSA? O
Pentágono?). No início de junho, ela finalmente obteve as respostas. Junto com
seu parceiro de reportagem, Glenn Greenwald, formado em direito e colunista do
jornal britânico The Guardian, Laura voou até Hong Kong e lá conheceu um
funcionário terceirizado da NSA, Edward J. Snowden, que entregou aos dois
milhares de documentos confidenciais, desencadeando uma polêmica de enormes
proporções sobre a extensão e a legalidade da espionagem exercida pelo governo
americano. Laura Poitras estava certa quando pensou que sua vida nunca mais
voltaria a ser a mesma.
lenn Greenwald mora e trabalha numa casa cercada pela Floresta da Tijuca, no Alto da
Boa Vista, um bairro afastado do Centro do Rio de Janeiro. Divide a casa com
David Miranda, seu companheiro brasileiro, dez cães e um gato, e o lugar dá a
impressão de uma república de estudantes transplantada para o meio do mato. O
relógio da cozinha está horas atrasado, mas ninguém repara; pratos tendem a se
empilhar na pia; a sala contém uma mesa, um sofá e uma tevê de tela grande,
além de um console de Xbox, uma caixa de fichas de pôquer e pouca coisa mais. A
geladeira nem sempre está abastecida de legumes e verduras frescas. Uma família
de macacos às vezes ataca as bananeiras do quintal, travando ruidosas disputas com os cachorros.
Greenwald trabalha quase o tempo todo numa varanda coberta, geralmente de camiseta,
short de surfista e sandália de dedo. Nos quatro dias que passei com ele,
vivia em movimento constante, falando ao telefone em português e inglês,
correndo para ser entrevistado na cidade,respondendo a telefonemas e e-mails de gente
em busca de informações sobre Snowden, tuitando para seus mais de 250 mil seguidores
(e travando discussões acaloradas com alguns deles), e depois se sentando para escrever mais artigos
para o Guardian sobre a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, a NSA,
tudo enquanto insistia em mandar seus cachorros fazerem silêncio. Num momento
especialmente febril, ele acabou dando um berro: “Vocês querem calar a boca?!”
Mas os cachorros não se deixaram impressionar.
Em meio a esse caos, Laura Poitras, uma mulher compenetrada de 49 anos, continuava
sentada num quarto vago ou à mesa da sala, trabalhando em silêncio em frente a
um de seus muitos computadores. De vez em quando ia até a varanda para conversar
com Greenwald sobre o artigo que ele estava escrevendo, ou às vezes era ele quem
parava seu trabalho para espiar a última versão de um novo vídeo que Laura
estava editando sobre Snowden. Conversavam muito – Greenwald em voz bem mais
alta e falando bem mais rápido do que Laura – e às vezes caíam na risada diante
de alguma piada ou lembrança absurda. O caso Snowden, diziam os dois, era uma
batalha em que estavam juntos, uma luta contra os poderes da espionagem que,
acreditam ambos, são uma ameaça às liberdades fundamentais americanas.
Dois repórteres do Guardian estavam no Rio para ajudar Greenwald, de maneira que
parte do nosso tempo era passado no hotel onde eles estavam hospedados, na beira
da praia de Copacabana, onde brasileiros em boa forma jogando vôlei na areia
acrescentavam aos acontecimentos uma nova camada de surrealismo. Laura assinou
parte dos artigos de Greenwald como coautora, mas quase sempre prefere ficar nos
bastidores, deixando que ele seja o único a escrever e falar. Por isso, é Glenn
Greenwald que as pessoas saúdam como um destemido defensor dos direitos
individuais, ou então acusam de ser um traidor nefasto, dependendo do ponto de vista.
“Eu digo sempre que ela é o Keyser Söze de toda a história, porque é ao mesmo tempo
invisível e onipresente”, disse Greenwald, referindo-se ao personagem de Kevin
Spacey no filme Os Suspeitos, um gênio do crime que planeja tudo, mas se faz
passar por um pé de chinelo. “Laura está no centro disso tudo, mas ainda assim
ninguém sabe quem é ela.”
Num fim de tarde, acompanhei Laura e Greenwald até a redação do jornal O Globo.
Greenwald tinha acabado de publicar um artigo no jornal, descrevendo como a NSA
espionava telefonemas e e-mails de brasileiros. A notícia provocou grande
escândalo no Brasil, e Greenwald foi recebido na redação como uma celebridade. O
editor-chefe apertou sua mão com entusiasmo, fazendo-lhe um convite para
escrever uma coluna regular no jornal; repórteres tiravam fotos de lembrança
com seus celulares. Laura filmou parte da festa, depois guardou sua câmera e
continuou observando tudo. Vi que ninguém lhe dava atenção, que todos só tinham
olhos para Greenwald, e ela sorriu. “Está muito bem assim”, comentou.
Laura Poitras parece empenhada em passar despercebida, mais por uma questão de
estratégia do que por timidez. Na verdade, ela pode se mostrar muito determinada
quando se trata de pesar o que deve ou não falar. Durante uma conversa que
começou com perguntas minhas sobre sua vida pessoal, ela reclamou: “Isso lembra
uma consulta dentária.”
Mas o retrato resumido é o seguinte: Laura foi criada numa família próspera nos
arredores de Boston e, depois de terminar o ensino médio, mudou-se para São
Francisco decidida a trabalhar como chef em algum restaurante de primeira linha.
Estudou também no Instituto de Arte de São Francisco, onde fez cursos com o
cineasta experimental Ernie Gehr. Em 1992, mudou-se para Nova York e começou a
abrir caminho no mundo-do cinema, ao mesmo tempo que frequentava aulas de
pós-graduação em teoria social e política na New School [universidade conhecida
pelo corpo docente de esquerda]. De lá para cá, fez cinco filmes, o mais recente
dos quais é O Juramento - sobre Salim Hamdan, um prisioneiro de Guantánamo, e
seu cunhado que vive no Iêmen - e recebeu dois prêmios, o Peabody e o MacArthur.
Em 11 de setembro de 2001, Laura morava no Upper West Side de Manhattan quando as
torres gêmeas foram atacadas. Como a maioria dos nova-iorquinos, nas semanas
seguintes ela se viu tomada pelo luto e dominada por sentimentos de
solidariedade e união. Foi um momento, disse ela, em que “as pessoas poderiam
ter feito qualquer coisa, num sentido positivo”. Quando esse momento levou à
invasão do Iraque, porém, ela achou que seu país tinha perdido o rumo. “Sempre
nos perguntamos de que maneira um país pode se desviar do caminho certo”, disse
ela. “Como as pessoas deixam que isso aconteça, como podem não fazer nada
enquanto os limites são ultrapassados?”
Laura não tinha nenhuma experiência em zonas de conflito, mas em junho de 2004
viajou para o Iraque e começou a documentar a ocupação americana.
Logo depois de chegar a Bagdá, ela obteve permissão para entrar em Abu Ghraib e
filmar uma visita de membros do Conselho Municipal à prisão. Isto ocorreu apenas
poucos meses depois da publicação das fotos em que prisioneiros de Abu Ghraib
apareciam sendo maltratados por soldados americanos. Um importante médico
sunita fazia parte da delegação de visitantes, e Laura Poitras filmou imagens
memoráveis de sua interação com os prisioneiros, gritando que estavam trancafiados ali sem razão.
Esse mesmo médico, Riyadh al-Adhadh, convidou Laura à sua clínica e mais tarde
permitiu que ela acompanhasse sua rotina em Bagdá. O documentário que ela
produziu então, O Meu País em Ruínas, tem como foco as dificuldades atravessadas
pela família do médico – os tiroteios e cortes de luz em seu bairro, o sequestro
de um dos seus sobrinhos. O filme estreou nos Estados Unidos no início de 2006 e
foi recebido com entusiasmo, tendo sido indicado ao Oscar de melhor documentário.
Tentar mostrar os efeitos da guerra sobre cidadãos iraquianos transformou Laura em alvo
de acusações graves – e falsas, ao que tudo indica. Em 19 de novembro de 2004,
soldados iraquianos apoiados por forças americanas atacaram uma mesquita no
bairro de Adhamiya, onde mora o médico, matando várias pessoas em seu interior.
No dia seguinte, a violência irrompeu no bairro. Laura estava com a família do médico,
e de tempos em tempos subia com eles à laje da casa para ter uma ideia do que estava ocorrendo.
Numa dessas idas, foi avistada por soldados de um batalhão da Guarda Nacional americana.
Pouco depois, um grupo de insurgentes lançou um ataque que matou um dos
americanos. Alguns soldados acharam que Laura havia subido à laje porque tinha
conhecimento prévio do ataque e queria filmá-lo. O comandante do batalhão, o
tenente-coronel reformado Daniel Hendrickson, disse-me que apresentou uma
denúncia contra ela no quartel-general de sua brigada.
Não há nenhum indício que sustente a sua acusação. Combates na área ocorreram
durante todo aquele dia, de maneira que teria sido difícil para qualquer
jornalista não se encontrar nas proximidades de algum ataque. Os próprios
soldados que acusaram Laura me disseram que não tinham provas contra ela.
Hendrickson ainda comentou que o quartel-general nunca respondeu à sua denúncia.
Por vários meses depois do ataque em Adhamiya, Laura Poitras continuou a viver na
Zona Verde de Bagdá [onde ficavam as autoridades americanas] e a trabalhar como
jornalista acompanhando tropas dos Estados Unidos. Exibiu seu documentário para
plateias militares, inclusive na própria Escola de Guerra do Exército americano.
Um oficial que conviveu com ela em Bagdá, o major reformado Tom Mowle, disse que
Laura estava sempre filmando, e que “fazia perfeito sentido” que estivesse
filmando num dia de violência. “Acho totalmente ridículas as acusações contra ela”, afirmou o major.
Embora as acusações não tivessem o apoio de provas, elas
podem estar na origem das muitas detenções e revistas de bagagem sofridas por
Laura. Hendrickson e outro soldado me contaram que, em 2007 – meses depois da
primeira detenção da jornalista –,investigadores da Força-Tarefa Antiterrorismo
do Departamento de Justiça entrevistaram os dois, perguntando-lhes sobre as
atividades de Laura em Bagdá no dia do ataque. A própria Laura, porém, nunca foi
procurada por esses ou quaisquer outros investigadores. “Forças iraquianas e
militares americanos atacaram uma mesquita em plena hora das preces de
sexta-feira, matando várias pessoas”, contou-me ela. “E a violência se
desencadeou no dia seguinte. Sou documentarista, e estava filmando na área.
Qualquer sugestão de que eu soubesse de algum ataque é falsa. O governo
norte-americano deveria investigar quem autorizou o assalto à mesquita, e não os
jornalistas que cobrem a guerra.”
Em junho de 2006, todas as passagens de Laura Poitras para voos dentro dos Estados
Unidos traziam as letras SSSS – sigla em inglês para Seleção para Checagem de
Segurança Secundária –, o que significa que o portador será submetido a revistas
mais rígidas que as habituais. A primeira detenção de Laura ocorreu no Aeroporto
Internacional de Newark antes de um embarque para Israel, onde iria exibir seu
filme. No voo de volta, ela foi retida por duas horas antes que lhe permitissem
entrar de novo no país. No mês seguinte, ela foi à Bósnia exibir seu filme num
festival e, quando o avião que tomou em Sarajevo pousou em Viena, foi chamada
pelo sistema de som do aeroporto e instruída a procurar um posto de segurança;
de lá, foi levada a uma van e conduzida a outra parte do aeroporto, e depois
foi colocada em uma sala onde sua bagagem foi revirada.
“Abriram minhas malas e examinaram uma a uma”, contou
Laura. “Perguntaram o motivo de minha viagem, e respondi que tinha exibido um
filme em Sarajevo sobre a Guerra do Iraque. E então fiquei mais ou menos amiga
do sujeito da segurança. E lhe perguntei qual era o problema. Ele me respondeu
que eu estava marcada: ‘Você foi classificada como uma ameaça do mais alto grau.
Sua pontuação é de 400 numa escala de 400.’ Perguntei se esse sistema de
pontuação funcionava em toda a Europa, ou se era só americano. E ele respondeu:
‘É coisa do seu governo, que foi quem nos disse para detê-la.’”
A partir do 11 de Setembro, o governo americano começou a compilar uma lista de
suspeitos de terrorismo que chegou a ter quase 1 milhão de nomes. E existem pelo
menos outras duas listas complementares, relacionadas às viagens aéreas. Uma
delas contém os nomes de dezenas de milhares de pessoas que não podem entrar ou
sair dos Estados Unidos a bordo de um avião. A outra, maior, sujeita as pessoas
nela incluídas a inspeções mais detalhadas e a interrogatórios nos aeroportos.
Essas listas já foram criticadas por grupos de defesa dos direitos civis por
serem excessivamente amplas e arbitrárias.
Em Viena, Laura foi finalmente liberada a tempo de pegar a conexão para Nova York,
mas logo que pousou no aeroporto JFK ela foi recebida no portão por dois agentes
armados e conduzida a uma sala para ser interrogada. Essa é uma rotina a que foi
submetida tantas vezes desde então – foram mais de quarenta ocasiões – que
Laura acabou perdendo a conta exata. Inicialmente, disse ela, as autoridades se
interessavam pelos papéis que levava, copiando todos os seus recibos e, certa
vez, seu caderno de notas. Depois que parou de levar suas anotações nas
viagens, o foco se transferiu para o equipamento eletrônico. Diziam-lhe que,
caso não respondesse às perguntas, confiscariam seu equipamento e obteriam as
respostas desse modo. Certa vez, confiscaram seus computadores e celulares, e
só devolveram semanas depois. Disseram-lhe ainda que o fato de se recusar a
responder às perguntas deles era, por si só, um ato suspeito. Como os
interrogatórios ocorriam em pontos de fronteiras internacionais, onde o governo
alega que os direitos constitucionais não se aplicam, nunca lhe foi consentida a
presença de um advogado.
“É uma violação absoluta”, disse Laura. “É isso que a gente sente. Eles querem
informações que dizem respeito ao meu trabalho, privadas e protegidas por lei. É
muito intimidador ser recebida por pessoas armadas sempre que você desce de um avião.”
Embora tenha escrito para membros do Congresso americano,
e feito requerimentos com base na Lei da Liberdade de Informação, Laura nunca
obteve uma explicação sobre o motivo de ter sido incluída numa lista de pessoas
sob monitoramento especial.“É enlouquecedor que eu tenha que ficar especulando
sobre o motivo”, disse ela.“A partir de quando começou a existir esse universo
em que a pessoa pode ser incluída numa lista sem que ninguém lhe diga nada, e
passa a ser detida a cada viagem por seis anos? Não tenho a menor ideia do
motivo. Sei que é uma suspensão completa do estado de direito.” E acrescentou:
“Nunca me disseram nada, nunca me pediram nada e eu não fiz nada. É uma situação
kafkiana. Não lhe dizem do que você é acusada.”
Depois de ter sido repetidamente detida, Laura Poitras
começou a tomar providências para proteger seus dados, pedindo a um companheiro
de viagem que levasse seu laptop, deixando seus cadernos de notas no estrangeiro
com amigos ou em cofres. Ela costuma apagar todo o conteúdo de seus computadores
e celulares, para que as autoridades não tenham o que ver. Ou passou a
criptografar suas informações, para que os agentes não possam ler os arquivos
que consigam apreender. Esses preparativos de segurança podem levar um dia, ou
mais, antes de cada uma de suas viagens.
E as revistas nas fronteiras não eram a única coisa com que ela precisava se
preocupar. Laura disse que, se as suspeitas do governo eram suficientes para que
fosse interrogada nos aeroportos, era muito provável que seus e-mails, seus
telefonemas e sua navegação na internet também se encontrassem sob vigilância.
“Imagino que existam Cartas de Segurança Nacional a respeito dos meus e-mails”,
disse ela, referindo-se a um dos instrumentos secretos de espionagem utilizados
pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Uma Carta de Segurança Nacional
intima quem a recebe – na maioria dos casos, provedores de internet e
companhias telefônicas – a fornecer dados de seus clientes sem dar ciência
disso a eles ou a qualquer outra pessoa. Laura suspeita (mas não pôde
confirmar, pois sua companhia telefônica e seu provedor de internet foram
proibidos de lhe contar) que o FBI emitiu Cartas de Segurança Nacional
dirigidas a suas comunicações eletrônicas.
Depois que começou a trabalhar em seu filme sobre
vigilância e espionagem em 2011, Laura elevou sua segurança digital a um nível
ainda mais extremo. Reduziu o uso do celular, que revela não só para quem a
pessoa está ligando e quando, mas também a localização de seu portador. Passou a
evitar transmitir documentos confidenciais por e-mail e ter conversas reservadas
ao telefone. Começou a usar programas que mascaravam os sites que visita. Depois
de ter sido abordada por Snowden em 2013, reforçou ainda mais a sua segurança.
Além de criptografar todos os e-mails mais delicados, começou a usar
computadores diferentes, um para editar seu filme, outro para comunicar-se e
mais um para ler documentos confidenciais (o computador usado para a leitura
desses documentos nunca foi conectado à internet).
Essas precauções podem parecer paranoicas – e são
descritas como “bastante extremas” por Laura–, mas as pessoas que entrevistou
para seu filme foram alvos do tipo de vigilância e interceptação que ela teme.
William Binney, antiga autoridade da NSA que acusou publicamente a agência de
espionagem ilegal, estava em casa certo dia em 2007 quando agentes do FBI
irromperam pela porta e apontaram armas para sua mulher, seu filho e ele
próprio. No momento em que um agente entrou em seu banheiro e apontou o cano da
arma para a sua cabeça, Binney estava nu no chuveiro. Seus computadores, discos
e arquivos pessoais foram confiscados e nunca mais devolvidos. Binney jamais foi
formalmente acusado de crime algum.
Jacob Appelbaum, militante em defesa da privacidade que
trabalhou como voluntário para a WikiLeaks, também participou do filme de Laura.
O governo emitiu uma ordem secreta ao Twitter para obter acesso aos dados da
conta de Appelbaum, ordem que se tornou pública quando o Twitter resistiu a ela.
Embora a empresa tenha acabado sendo forçada a entregar as informações,
conseguiu permissão para comunicar o ocorrido a Appelbaum. A Google e um pequeno
provedor que Appelbaum utilizava também receberam ordens secretas, e foram à
Justiça para conseguir avisá-lo. Tal como Binney, Appelbaum jamais foi acusado de crime algum.
Durante anos, Laura Poitras submeteu-se às revistas em
aeroportos queixando-se pouco em público, com medo de que seus protestos
gerassem mais hostilidade da parte do governo, mas no ano passado ela chegou ao
limite do que podia tolerar. Num interrogatório no Aeroporto de Newark, depois
de uma viagem à Grã-Bretanha, disseram-lhe que não podia tomar notas. A conselho
de advogados, ela sempre registrava os nomes dos agentes da imigração, as
perguntas que lhe faziam e todo o material que copiavam ou apreendiam. Dessa
vez, um dos agentes ameaçou algemá-la se continuasse a escrever. Disseram-lhe
que estava proibida de anotar qualquer coisa porque poderia usar sua caneta como arma.
“Pedi que me trouxessem um lápis de cera”, lembrou ela, “e ele disse que os lápis de cera também estavam
proibidos.”
Laura foi conduzida a uma outra sala e interrogada por três agentes –
um se postou atrás dela, outro fazia as perguntas e o terceiro
era um supervisor. “Aquilo durou talvez uma hora e meia”, contou ela. “Eu estava
tomando nota das perguntas dele, ou tentando fazer isso, e começaram a gritar
comigo. Pedi que me mostrassem a lei que me proibia de fazer anotações. Aí eles
me disseram que quem fazia as perguntas eram eles. Foi um confronto muito agressivo e hostil.”
Laura Poitras conheceu Glenn Greenwald em 2010, quando se interessou pelo trabalho
dele sobre a WikiLeaks [na época Greenwald escrevia para o site Salon e defendeu
a divulgação de documentos confidenciais feita por Julian Assange]. Em 2011,
Laura esteve no Rio de Janeiro para entrevistar Greenwald para seu
documentário. Ele sabia das revistas a que ela era submetida, e já vinha lhe
pedindo permissão para escrever a respeito. Depois do ocorrido em Newark, ela lhe deu luz verde.
“Laura me disse que estava farta”, contou Greenwald.
“Anotar tudo e documentar o que lhe acontecia era a única forma que tinha de
conservar alguma iniciativa, manter algum grau de controle sobre os fatos.
Documentar é a profissão dela. Acho que ela sentiu que lhe tiravam o último
vestígio de segurança e controle que tinha na situação, sem qualquer explicação,
como um simples exercício arbitrário de poder.”
O artigo “Cineasta americana repetidamente detida na fronteira” foi publicado por
Greenwald no Salon em abril de 2012. Pouco depois, Laura parou de ser detida.
Seis anos de perseguição e abusos, esperava ela, poderiam ter chegado ao fim.
Laura Poitras não foi a primeira escolha de Snowden como
destinatária dos milhares de documentos da NSA que ele decidiu vazar. Na
verdade, um mês antes de fazer contato com ela, Snowden procurou Greenwald, que
tinha escrito muitos artigos críticos às guerras no Iraque e no Afeganistão e à
erosão das liberdades civis americanas depois do 11 de Setembro. Snowden enviou
a Greenwald um e-mail anônimo falando que tinha documentos que pretendia
compartilhar, seguido de um passo a passo sobre como criptografar os textos, mas
Greenwald ignorou as mensagens. Snowden então enviou ao repórter um link para um
vídeo sobre criptografia, que tampouco teve resposta.
“O programa de criptografia é muito chato e complicado”, comentou Greenwald sentado
em sua varanda durante uma chuvarada. “Ele continuava a insistir, mas acabou
frustrado e decidiu procurar a Laura.”
Snowden tinha lido o artigo de Greenwald sobre os
problemas de Laura nos aeroportos americanos, e sabia que ela estava trabalhando
num documentário sobre os programas de espionagem do governo americano; também
tinha visto um documentário curto sobre a nsa que ela tinha feito para um fórum
online do New York Times. Imaginou que Laura fosse entender os programas que ele
pretendia revelar ao público, e que tivesse a capacidade de comunicar-se com ele de maneira segura.
Em Março, Laura Poitras tinha decidido que o estranho com quem vinha se comunicando
era confiável. Não encontrou o tipo de provocação que esperaria de um agente do
governo – nenhum pedido de informação quanto às pessoas com quem mantinha
contato, nenhuma pergunta sobre o que andava fazendo. Snowden lhe disse desde o
primeiro momento que ela precisaria trabalhar com alguma outra pessoa, e que
devia procurar Greenwald. Ela não sabia que Snowden já tinha tentado o contato
com Greenwald – só ao encontrar-se com Snowden em Hong Kong, Greenwald se daria
conta de que se tratava da mesma pessoa que o tinha procurado mais de seis meses antes.
Houve surpresas para todos nessa troca de mensagens –
inclusive para Snowden, que mais tarde responderia às perguntas que lhe
encaminhei por intermédio de Laura. Em resposta à pergunta sobre quando tinha
sabido que podia confiar nela, ele escreveu: “Chegamos a um ponto no processo de
checagem em que descobri que Laura desconfiava mais ainda de mim do que eu dela,
e sou famoso pelo meu grau de paranoia.” Quando lhe perguntei sobre o silêncio
inicial de Greenwald diante de seus pedidos e instruções sobre criptografia,
Snowden respondeu: “Sei que os jornalistas são pessoas ocupadas e já imaginava
que seria difícil ser levado a sério, tendo em vista especialmente a escassez de
detalhes que podia revelar num primeiro momento. Por outro lado, estamos em
2013, e ele é um jornalista que escreve regularmente sobre o excesso de poder do
Estado. Fiquei surpreso de ver que existem, nos órgãos de imprensa, pessoas que
não percebem que qualquer mensagem não criptografada enviada pela internet acaba
nas mãos de todos os serviços de informação do mundo.”
Em abril, Laura enviou um e-mail a Greenwald dizendo que precisavam se encontrar
pessoalmente. Por acaso ele estava nos Estados Unidos, participando de uma
conferência em Nova York, e os dois se encontraram no saguão do hotel dele. “Ela
tomou muitos cuidados”, lembrou Greenwald. “Insistiu para eu não levar meu
celular, pois eles podem ser monitorados remotamente pelo governo, mesmo
desligados. Trazia todos os e-mails impressos, e lembro bem que, ao lê-los, tive
a sensação intuitiva de que era tudo verdade. A paixão e a reflexão por trás do
que dizia Snowden –e àquela altura ainda não sabíamos que ele era Snowden – eram
palpáveis.”
Greenwald instalou um programa de criptografia em seu
computador, e começou a comunicar-se diretamente com o desconhecido. O trabalho
era organizado como uma verdadeira operação de espionagem, em que Laura atuava
como mentora. “A segurança operacional era determinada por ela”, contou
Greenwald. “Quais computadores eu devia usar, como devia me comunicar, como
devia proteger a informação, onde devia guardar cópias, a quem devia entregá-las
e em quais lugares. Ela tem um entendimento altamente especializado de como
fazer uma reportagem como essa com toda segurança técnica e operacional. Nada
disso teria ocorrido com tanta eficiência e impacto se ela não tivesse
trabalhado comigo em todos os aspectos, e na verdade não tivesse respondido pela
coordenação da maior parte do trabalho.”
Snowden começou a passar os documentos para os dois. Laura
não quis me contar o momento exato em que isso ocorreu; disse que não quer dar
ao governo informações que possam ser usadas num processo contra Snowden ou ela
própria. Em seguida, Snowden lhe disse que logo estaria pronto para ter um
encontro com eles. Quando Laura lhe perguntou se devia planejar uma viagem de
carro ou de trem, Snowden respondeu que se preparasse para tomar um avião.
Em maio, ele mandou novas mensagens criptografadas, dizendo a Laura e a Greenwald
para irem para Hong Kong. Greenwald tomou um avião do Rio para Nova York, onde
Laura o encontrou para uma série de reuniões com o editor da versão americana do
Guardian. Com a reputação do jornal em jogo, o editor lhes pediu que levassem
com eles um repórter veterano, Ewen MacAskill. Em 1º de junho o trio embarcou
num voo de dezesseis horas entre Nova York e Hong Kong.
Snowden tinha enviado uma quantidade pequena de
documentos a Greenwald, uns vinte no total, mas Laura havia recebido uma leva
bem maior, que ainda não tivera a oportunidade de ler com a devida atenção. A
bordo do avião, Greenwald começou a examiná-los, chegando depois de algum tempo
a uma ordem judicial secreta exigindo que a companhia telefônica Verizon
entregasse à NSA os registros telefônicos de seus clientes. A ordem judicial, de
quatro páginas, tinha sido emitida pelo Tribunal de Vigilância de Inteligência
Estrangeira, órgão cujas decisões são secretas [o tribunal foi criado pela Lei
de Vigilância de Inteligência Estrangeira, Fisa na sigla em inglês, para
autorizar escutas que envolvessem cidadãos americanos]. Embora corressem boatos
de que a NSA vinha reunindo imensas quantidades de registros telefônicos nos
Estados Unidos, o governo sempre havia negado o fato.
Laura, sentada vinte fileiras atrás de Greenwald, acabou
indo até a dianteira para conversar sobre o que ele estava lendo. Enquanto o
passageiro a seu lado dormia, Greenwald apontou para a ordem da Fisa em seu
monitor e perguntou a Laura:“Você viu isto? Este documento diz mesmo o que eu acho que diz?”
Em alguns momentos, os dois conversaram com tanta empolgação que acabaram
perturbando os passageiros que tentavam dormir; então decidiram sossegar. “Foi
um momento incrível”, disse Greenwald. “Só quando você examina esses documentos
é que tem uma ideia do seu alcance. Foi um banho de adrenalina. Pela primeira
vez, você sente que tem poder diante de um sistema descomunal que você tenta
minar e expor – mas geralmente não consegue avançar muito, porque não tem
instrumentos para isso. Agora os instrumentos tinham caído no nosso colo.”
Snowden havia recomendado que, em Hong Kong, Greenwald e
Laura fossem numa determinada hora até o distrito de Kowloon, parando na porta
de um restaurante num centro comercial ligado ao hotel Mira. Ali, teriam que
ficar esperando até aparecer um homem carregando um cubo mágico, e então
deveriam perguntar a ele a que horas o restaurante abriria. O homem responderia,
mas então lhes diria que a comida era ruim. Quando o homem com o cubo mágico
apareceu, era Edward Snowden, que tinha 29 anos na ocasião, mas parecia ainda mais novo.
“Quase caímos para trás quando vimos como era jovem”,
contou Laura, ainda com surpresa na voz. “Eu não fazia ideia. Imaginei que
estivesse lidando com alguém que ocupasse uma alta posição, e portanto fosse
mais velho. Mas eu também sabia, a partir da nossa correspondência, que era uma
pessoa com um conhecimento incrível de sistemas de computador, o que me fazia
imaginá-lo um pouco mais jovem. Então eu imaginava uma pessoa com uns 40 e
poucos anos, alguém acostumado a usar computadores a vida toda, mas que já
tivesse chegado a um cargo superior.”
Em nossa troca de mensagens criptografadas, Snowden também comentou o encontro:
“Acho que ficaram decepcionados ao ver que eu era mais jovem do que esperavam, e
eu fiquei decepcionado ao vê-los chegar um pouco antes da hora, o que complicou
a checagem inicial. Assim que nos vimos num lugar fechado, porém, acho que as
precauções obsessivas e a evidente boa-fé do que era dito deixaram todo mundo mais tranquilo.”
Os dois acompanharam Snowden até o quarto dele, onde Laura sacou a sua câmera,
assumindo de imediato seu papel de documentarista. “Eu estava um pouco tenso,
um pouco desconfortável”, contou Greenwald sobre esses minutos iniciais. “Nós
nos sentamos, e começamos a bater papo, enquanto Laura imediatamente armava a
sua câmera. Assim que ela ligou o aparelho, eu me lembro muito claramente que
tanto ele quanto eu ficamos completamente retesados.”
Greenwald começou a entrevista. “Eu queria verificar a
coerência do que ele dizia, e obter o máximo de informação possível, pois sabia
que aquilo poderia afetar a minha credibilidade. Só conseguimos estabelecer uma
conexão natural depois das primeiras cinco ou seis horas.”
Para Laura, a câmera certamente afeta o comportamento das pessoas, mas não de uma
forma negativa. Quando alguém concorda em ser filmado – mesmo que o
consentimento seja obtido de forma indireta, quando ela liga a câmera –, isso é
um gesto de confiança que sempre aumenta a voltagem emocional da ocasião. O que
Greenwald viveu como um momento de tensão, Laura percebeu como um laço especial
entre eles, que passaram a compartilhar um risco imenso. “É uma emoção muito
concreta quando você vê que confiam em você”, disse ela.
Snowden, embora surpreendido, acabou se acostumando.
“Como se pode imaginar, os espiões normalmente são alérgicos a qualquer contato
com repórteres ou a imprensa, de maneira que eu era uma fonte virgem – tudo era
surpresa para mim... Mas nós três sabíamos bem o que estava em jogo. Na verdade,
o peso da situação tornou mais fácil nos concentrarmos no interesse público, e
não no nosso. Acho que todos entendemos que, depois que Laura ligou a câmera,
não havia mais como voltar atrás.”
Pela semana seguinte, os preparativos dos três obedeciam ao mesmo padrão – assim que
entravam no quarto de Snowden, tiravam as baterias dos celulares e os guardavam
no frigobar do quarto. Colocavam travesseiros encostados na porta, para impedir
que algo pudesse ser ouvido do lado de fora, e então Laura armava a câmera e
começava a filmar. Era importante para Snowden explicar logo aos dois de que
maneira funcionava a máquina de espionagem do governo americano porque ele
temia ser preso a qualquer instante.
As primeiras reportagens de Greenwald – incluindo a primeira, relatando a ordem
judicial recebida pela Verizon que ele leu no voo para Hong Kong – foram
publicadas enquanto Snowden ainda estava sendo entrevistado por ele e Laura. O
que deu origem a uma experiência muito peculiar, a de criarem juntos uma notícia
e depois poderem assistir enquanto ela se espalhava. “Era possível acompanhar a
repercussão”, contou Laura. “Nosso trabalho era muito concentrado, e exigia
nossa atenção, mas podíamos ver pela tevê que estava dando certo. Estávamos
naquele círculo fechado, e sabíamos das reverberações à nossa volta, elas
podiam ser vistas e sentidas.”
Snowden lhes tinha dito, antes da chegada dos dois a Hong
Kong, que queria revelar quem era. Ele queria assumir a responsabilidade pelo
que fazia, contou Laura, e não queria que outros fossem injustamente visados.
Também imaginava que em algum momento acabaria sendo identificado. Laura
produziu um vídeo de doze minutos e meio com Snowden que foi postado na internet
no dia 9 de junho, poucos dias depois da publicação dos primeiros artigos de
Greenwald. A partir daí, armou-se um verdadeiro circo midiático em Hong Kong,
com repórteres fazendo o impossível para descobrir o paradeiro dos três.
Há uma série de assuntos sobre os quais Laura Poitras preferiu não conversar comigo
on the record (para publicação), e outros que sequer aceitou abordar – alguns
por razões de segurança ou de ordem legal, outros porque quer ser a primeira a
contar partes cruciais de sua história em seu próprio documentário. Sobre a
maneira como ela e Snowden se despediram depois da postagem do vídeo, ela só me
disse o seguinte: “Eu e ele sabíamos que, quando o vídeo fosse divulgado,
aquela etapa do trabalho estaria encerrada.”
Snowden deixou seu hotel e desapareceu. Alguns repórteres
descobriram onde Laura estava hospedada – ela e Greenwald estavam em hotéis
diferentes – e começaram a ligar para o quarto dela. A certa altura, alguém
bateu à porta e a chamou pelo nome. Ela já sabia que Greenwald também tinha sido
localizado, então ligou para a segurança do hotel e pediu que acompanhassem sua
saída por uma porta dos fundos.
Laura ainda tentou permanecer mais um tempo em Hong Kong,
achando que Snowden poderia querer tornar a vê-la, e também porque estava
interessada em filmar a reação dos chineses às revelações dele. Mas agora ela
própria tinha se tornado alvo de interesse. No dia 15 de junho, enquanto filmava
uma manifestação a favor de Snowden na porta do consulado dos Estados Unidos,
Laura foi reconhecida por um repórter da CNN, que começou a lhe fazer perguntas.
Ela recusou-se a responder e escapuliu dali. Na mesma noite, deixou Hong Kong.
Laura voou diretamente para Berlim, onde no segundo
semestre do ano passado tinha alugado um apartamento para editar seu
documentário sem medo de que o FBI pudesse aparecer a qualquer momento com um
mandado de busca dos seus discos rígidos.“Constantemente faço uma distinção
entre os lugares onde sinto que posso ter privacidade ou não”, disse ela, “e
essa linha está ficando cada vez mais estreita.” E acrescentou: “Não vou parar o
que estou fazendo, mas preferi deixar os Estados Unidos. Literalmente, senti que
não tinha meios de proteger meu material no país, e isso antes ainda de ser
procurada por Snowden. Se você promete a alguém que vai protegê-lo como sua
fonte, mas sabe que o governo está monitorando você ou pode apreender seu
laptop, acaba sendo impossível fazer isso.”
Depois de duas semanas em Berlim, Laura Poitras viajou
para o Rio de Janeiro, onde estive com ela e Greenwald alguns dias mais tarde.
Minha primeira parada foi o hotel, em Copacabana, onde estavam trabalhando
naquele dia com MacAskill e outro repórter do Guardian, James Ball. Laura estava
editando um novo vídeo sobre Snowden para ser postado dali a alguns dias no
website do Guardian. Greenwald trabalhava em outro artigo de imenso interesse,
dessa vez sobre a colaboração próxima entre a Microsoft e a NSA. O quarto estava
cheio – não havia cadeiras suficientes para todos, e sempre havia alguém sentado
na cama ou no chão. Uma grande quantidade de pen drives circulava entre os
presentes, embora ninguém me tenha dito o que continham.
Laura e Greenwald estavam preocupados com Snowden. Não
tinham notícias dele desde Hong Kong. Àquela altura, ele estava retido num limbo
diplomático na área de passageiros em trânsito do Aeroporto Sheremetyevo, em
Moscou, e era o homem mais procurado do planeta, acusado pelo governo dos
Estados Unidos de espionagem. (Mais tarde, os russos lhe concederiam asilo
temporário.) O vídeo em que Laura vinha trabalhando, usando material gravado em
Hong Kong, seria a primeira imagem que o mundo veria de Snowden em mais de um mês.
“Agora que ele está incomunicável, nem sabemos se voltaremos a falar com ele alguma vez”,
disse Laura.
“E ele está bem?”, perguntou MacAskill.
“O advogado dele disse que sim”, respondeu Greenwald.
“Mas o advogado não está em contato direto com Snowden”, lembrou Laura.
Quando Greenwald chegou em casa naquela noite, Snowden
entrou em contato com ele pela internet. Dois dias mais tarde, enquanto
trabalhava na casa de Greenwald, Laura também teve notícias dele.
Anoitecia, e gritos de animais e pios de aves vinham da
mata em volta da casa. A esses sons se misturaram os latidos de cinco ou seis
cachorros quando atravessei o portão de entrada. Por uma das janelas, vi Laura
na sala, concentrada num dos seus computadores. Passei por uma porta de tela,
ela olhou para mim por um segundo e voltou ao trabalho, indiferente à cacofonia
à sua volta. Ao final de dez minutos, fechou seu computador e murmurou um pedido
de desculpas, dizendo que precisava tomar algumas providências.
Não demonstrava nenhuma emoção, nem me disse que acabara de trocar mensagens
cifradas com Snowden. Eu não insisti, mas alguns dias mais tarde, depois que
voltei para Nova York e ela seguiu para Berlim, perguntei se era isso que estava
fazendo naquela noite. Ela confirmou, mas comentou que não quis falar a respeito
na ocasião porque, quanto mais ela fala sobre suas interações com Snowden, mais
se sente distante delas.
“É uma experiência emocional muito singular”, disse Laura, “ser procurada por um
completo desconhecido que lhe diz que vai arriscar a vida para expor coisas que
o público precisa saber. Ele estava pondo a sua vida na reta, e decidiu confiar
esse fardo a mim. Eu quero conservar uma relação emocional com essa experiência.”
Sua ligação com Snowden e com o material, continuou a explicar, é o que vai conduzir
o seu trabalho. “Me sinto tocada pelo que ele vê como o horror do mundo de hoje,
e o que imagina que ainda pode acontecer. E quero passar isso adiante com o
máximo de ressonância possível. Se eu fosse ficar dando entrevistas
intermináveis para a tevê, é o tipo de coisa que me afastaria daquilo a que
preciso me manter ligada. Não se trata só de um furo de reportagem. É a vida de uma pessoa.”
Laura Poitras e Glenn Greenwald são exemplos especialmente dramáticos de como atua o
jornalismo independente em 2013. Nem uma nem o outro trabalham numa redação, e
fazem questão de controlar pessoalmente tudo que é publicado, e em qual momento.
Quando o Guardian não publicou com a presteza que esperavam o primeiro artigo
tratando da Verizon, Greenwald cogitou dar outro destino ao texto, mandando uma
cópia criptografada para um colega que trabalha em outro veículo. Ele também
pensou em criar um website no qual poderiam publicar tudo, que planejou batizar
de NSA Disclosures, algo como Revelações da NSA. No final, o Guardian decidiu
publicar seus artigos. Mas Laura e Greenwald criaram uma rede própria de
divulgação, com reportagens em outros veículos na Alemanha e no Brasil, que
planejam diversificar ainda mais no futuro. Eles não compartilharam com ninguém
a totalidade dos documentos que detêm.
“Temos parcerias com órgãos noticiosos, mas achamos que
nossa responsabilidade primária é para com o risco que nossa fonte correu e o
interesse público da informação que nos entregou”, afirmou Laura. “Um órgão de
imprensa qualquer só figura na nossa lista depois disso.”
Ao contrário de muitos repórteres da grande imprensa, nem Laura nem Greenwald
ostentam uma fachada de indiferença política. Faz anos que Greenwald não tem
papas na língua; no Twitter, respondeu recentemente a alguém que o criticou
dizendo:“Você é um imbecil completo. E sabe disso, não é?” Suas opiniões
políticas de esquerda, combinadas a seu estilo cortante, o tornaram malquisto
por muita gente no establishment político. Seu trabalho com Laura é tachado de
militante e nocivo à segurança nacional.
Laura, embora não seja tão dada à polêmica quanto
Greenwald, discorda da ideia de que o trabalho dos dois seja militância. “Claro
que eu tenho as minhas opiniões”, disse ela.“Quer saber se eu acho que a
vigilância do Estado está fora de controle? Acho. É uma coisa assustadora, e é
bom mesmo que as pessoas fiquem com medo. Temos um governo paralelo e secreto
que não para de crescer, invocando sempre a segurança nacional e sem a
supervisão ou a discussão nacional que se imaginariam necessárias numa
democracia. E não estou dizendo isso por militância. Temos documentos que confirmam tudo.”
Laura possui uma habilidade que é vital – e ainda rara
entre os jornalistas – numa era em que a espionagem oficial é tão corriqueira:
ela sabe se proteger do monitoramento. Como disse Snowden, “a partir do que está
sendo revelado neste ano, fica muito claro que toda comunicação desprotegida
entre jornalista e fonte configura um descuido imperdoável”.
Uma nova geração de fontes, como Snowden ou Bradley Manning [o soldado que vazou
documentos para a WikiLeaks], tem acesso não apenas a um punhado de segredos,
mas a milhares de uma vez, graças à sua capacidade de coletá-los em redes
protegidas. Essas fontes preferem compartilhar seus segredos não com os maiores
veículos e seus repórteres, mas com repórteres com quem tenham afinidade
política e consigam receber os vazamentos sem que ninguém perceba.
No chat que mantive com ele, uma troca de mensagens criptografadas em tempo real,
Snowden explicou por que resolveu procurar Laura: “Laura e Glenn estão entre os
poucos que investigaram assuntos polêmicos de maneira destemida por todo esse
período, mesmo enfrentando críticas pessoais, que no caso de Laura acabaram por
transformá-la em alvo dos mesmos programas envolvidos nas revelações recentes.
Ela demonstrou ter a coragem, a experiência pessoal e a capacidade necessárias
para lidar com o que talvez seja a missão mais perigosa que um jornalista pode
receber –revelar malfeitos secretos do governo mais poderoso do mundo. Por isso,
era uma escolha óbvia.”
As revelações de Snowden se converteram no centro do documentário de Laura Poitras
sobre vigilância e espionagem, mas ela também se viu envolvida numa dinâmica
nova, pois não tem como evitar figurar como personagem em seu próprio filme. Ela
nunca narrou seus filmes anteriores nem apareceu neles, e diz que pretende
continuar agindo assim, mas percebe que precisará ser representada de alguma
forma, e vem se perguntando de que maneira poderá fazê-lo.
Ao mesmo tempo, Laura vem avaliando sua vulnerabilidade jurídica. Ela e Greenwald
ainda não foram acusados de nada, pelo menos até agora. Os dois não pretendem
ficar fora dos Estados Unidos para sempre, mas nenhum dos dois tem planos
imediatos de retorno ao país. Um membro do Congresso já comparou o que os dois
fizeram a uma forma de traição, e ambos estão muito conscientes da perseguição
sem precedentes, no governo Obama, não só aos responsáveis por vazamentos de
informações como aos jornalistas que recebem esses vazamentos. Enquanto estive
com eles, falaram sobre as possibilidades de volta. Greenwald diz que
prendê-los seria pouco inteligente da parte do governo, pela péssima
publicidade que isso produziria. Além disso, não deteria o fluxo de informações.
Ele falou quando voltávamos para sua casa de táxi, ao final de um dia cheio.
Estava escuro do lado de fora. Greenwald perguntou a Laura:
“Desde que isso tudo começou, você teve algum dia sem NSA?”
“E o que é isso?”, perguntou ela.
“Acho que a gente está precisando de um dia assim”, disse
Greenwald. “Não que vá conseguir tirar.”
Laura falou em voltar às aulas de ioga. Greenwald disse que pretendia retomar sua
prática regular de tênis. “Estou disposto a ficar velho por causa dessa história”,disse ele,
“mas não a ficar gordo.”
A conversa entre os dois desviou-se para a questão da volta aos Estados Unidos.
Greenwald disse, meio em tom de brincadeira, que se fosse preso a WikiLeaks
seria a próxima a publicar os documentos da NSA. “Eu só precisaria dizer: ‘Então
tá, esse aqui é o meu amigo Julian Assange, que vai ficar no meu lugar.
Divirtam-se lidando com ele.’”
E Laura lhe perguntou: “Quer dizer que você vai voltar aos Estados Unidos?”
Ele riu e lembrou que, infelizmente, o governo nem sempre tomava as decisões mais
sensatas. “Se eles tivessem juízo”, respondeu, “eu voltaria.”
Laura sorriu, muito embora o assunto seja difícil para
ela. Laura não é uma pessoa tão expansiva ou relaxada quanto Greenwald, o que
torna ainda mais inusitada a química da dupla. Ela se preocupa com a segurança
física dos dois. E também se preocupa, claro, com a espionagem. “A sua
localização no planeta é o mais importante de tudo”, diz ela. “Eu quero ficar o
máximo que puder fora da área de cobertura deles. Não pretendo facilitar as
coisas para eles. Se quiserem me seguir, vão ter de dar duro. Não vou ficar por
aí piscando em qualquer GPS. O lugar onde eu estou é importante para mim.
Importante de um modo novo, que antes eu não conhecia.”
Há muita gente com raiva dos dois, e muitos governos, além de entidades
particulares, que não se incomodariam nem um pouco em pôr a mão nos milhares de
documentos da NSA que a dupla ainda controla. Os dois publicaram apenas um
punhado deles – um punhado top secret, capaz de gerar manchetes e audiências no
Congresso –, e parece pouco provável que um dia venham a publicar tudo, ao
estilo da WikiLeaks. Laura e Greenwald continuam guardando mais segredos do que
revelam, pelo menos por enquanto.
“Temos uma janela aberta para esse mundo que ainda
estamos tentando entender”, disse Laura Poitras numa das nossas últimas
conversas. “Não queremos manter tudo secreto, mas montar o quebra-cabeça. É um
projeto que vai levar tempo. Nossa intenção é revelar o que tiver interesse
público, mas também adquirir uma boa compreensão do que seja esse mundo, e então
tentar torná-lo conhecido.”
O paradoxo mais profundo, claro, é que o esforço que os dois vêm fazendo para
compreender e denunciar a espionagem governamental pode ter condenado os dois a
serem perpetuamente monitorados.
“Nossas vidas nunca mais vão ser as mesmas”, disse Laura. “Não sei se algum dia vou
conseguir morar em algum lugar e sentir que tenho privacidade. Isso pode ter se tornado totalmente
impossível.”
Mande sua chave - por Peter Maass.docx |